Conversas sobre o trabalho eram comuns nos almoços de família, na cidade de Capão da Canoa, no litoral gaúcho. Mas, em um domingo de 2017, o assunto tomou outro rumo — mais sério. Ana Helena Ulbrich contou ao irmão Henrique Dias sobre sua frustração como farmacêutica do Grupo Hospitalar Conceição, a maior rede pública de hospitais da região Sul do País.

Todos os dias, ela tinha de analisar cerca de duas centenas de prescrições, algumas com mais de 20 medicamentos, em questão de minutos — o tempo necessário para decidir, mas nem sempre para ter certeza.

“Eu me sentia insegura, achando que poderia deixar passar algum erro”, lembra Ana Helena, de 44 anos, em conversa com o NeoFeed.

Cientista da computação, doutorando da PUC do Rio Grande do Sul, Henrique estava envolvido no desenvolvimento de uma inteligência artificial para detecção de outliers. Por que não treinar um algoritmo específico para encontrar dados fora do padrão nos receituários médicos?

Nascia ali a ideia para a NoHarm. Oito anos depois, Ana Helena entraria para a lista da revista Time das cem pessoas mais influentes do mundo em IA.

Divulgado em setembro de 2025, o ranking traz nomes poderosos da inteligência artificial global. Além dela, apenas um outro brasileiro, Cristiano Amon, CEO e presidente da Qualcomm, figura no rol da Time. Mas, diferente dele, de Elon Musk, Mark Zuckerberg, Sam Altman, Liang Wenfeng ou Jensen Huang, Ana Helena e Henrique não ficaram milionários. Aliás, essa nunca foi a ambição deles.

Os irmãos se referem à NoHarm não como uma startup tradicional, mas como um instituto sem fins lucrativos. Desde o início, a opção foi clara: fornecer a tecnologia 100% gratuita ao SUS.

Eles chegaram a receber propostas de financiamento privado — uma delas de R$ 10 milhões. Jamais aceitaram, no entanto. “Nosso propósito não combina com o propósito do lucro”, diz Henrique, de 43 anos, em entrevista ao NeoFeed. E eles não se arrependem. Com investimentos sociais, já arrecadaram R$ 6 milhões.

A NoHarm foi selecionada, por exemplo, em um edital do BNDES ligado ao Juntos pela Saúde, iniciativa do governo federal de fortalecimento do sistema público de saúde. Recebeu ainda prêmios e apoio de programas como o Latin America Research Awards (LARA), do Google; o Grand Challenges, da Fundação Bill & Melinda Gates (renomeada hoje para Fundação Gates), e a AWS Health Equity Initiative, da Amazon Web Services.

“O investimento social que recebemos aumenta cerca de 60% ao ano”, diz o cientista da computação. “Ou seja, a gente vai conseguir muito mais do que aqueles 10 milhões de reais que recusamos.”

A NoHarm também está em hospitais particulares. Nesse caso, o serviço é cobrado. Os valores por leito variam de R$ 42 a R$ 52,50, conforme a capacidade de ocupação da instituição, com um contrato mínimo de R$ 4 mil. “Nossa receita cresce cerca de 50% ao ano”, afirma Henrique.

Código aberto

A plataforma entrou em funcionamento em 1º de abril de 2020, quando a primeira prescrição foi avaliada na Santa Casa de Porto Alegre. Desde então, foi adotada por cerca de 200 hospitais, espalhados por todo o país. A maioria deles é pública. “Nós procuramos manter mais ou menos a mesma relação do atendimento hospitalar brasileiro: 70% é SUS”, explica Ana Helena.

Oferecida em código aberto para que outras pessoas possam criar plataformas semelhantes, a NoHarm analisa atualmente cerca de 5 milhões de prescrições por mês, com mais de 2,5 milhões de pacientes beneficiados. A farmacêutica é categórica ao lembrar que a IA não substitui o julgamento profissional. O algoritmo existe para dar suporte às decisões — ao fim e ao cabo, sempre humanas.

Um estudo publicado na revista Journal of Hospital Pharmacy and Health Services ajuda a dimensionar o impacto da tecnologia. Em um hospital público de Minas Gerais, a adoção da NoHarm fez a taxa de prescrições analisadas saltar de 0,6% para 49%, enquanto a taxa de erros caiu de 13% para 0,3%. Com o apoio da inteligência artificial, os farmacêuticos passaram a enxergar riscos antes invisíveis.

Ao evitar que medicamentos desnecessários ou mal indicados cheguem aos pacientes, a ferramenta também reduz desperdícios. No hospital mineiro, conforme a pesquisa, a economia aumentou de cerca de R$ 1 mil para quase R$ 8 mil por mês.

“Nosso propósito não combina com o propósito do lucro”, diz Henrique Dias (Foto: Divulgação/NoHarm)
No ranking da revista americana, a farmacêutica gaúcha entrou na categoria "inovadores" (Foto: time.com)
A NoHarm conta hoje com 22 funcionários (Foto: Divulgação/NoHarm)
Adotada por 200 hospitais, a plataforma analisa mensalmente cerca de 5 milhões de prescrições (Foto: noharm.ai)

A redução de custos é um efeito colateral. O principal beneficiário é o paciente. Antes de qualquer medicamento ser administrado, a prescrição passa pelo crivo do farmacêutico clínico, responsável por avaliar se aquele conjunto de remédios faz sentido — se a dose é adequada, se o intervalo está correto, se não há interações perigosas com outros tratamentos em curso. Erros no processo podem ter consequências graves — até fatais.

Fruto de uma parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais e o Instituto de Estudo de Saúde Suplementar, o relatório Primeiro Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, publicado em 2017, traz dados aterradores.

A cada ano, cerca de 1,4 milhão de brasileiros foram vítimas de falhas no cuidado médico. Intercorrências evitáveis causadas, entre outros equívocos, por erros na prescrição de medicamentos. Deles, 829 morrem todos os dias. São três óbitos a cada cinco minutos.

Na rotina de um grande hospital brasileiro, a lógica normalmente é a de pouco tempo, muitas prescrições e decisões tomadas quase em uma corrida contra o relógio. É nesse espaço apertado entre o ideal e o possível que a NoHarm atua — integrando dados do prontuário do paciente, como exames e comorbidades, e alertando os farmacêuticos sobre qualquer ponto fora da curva.

E pensar que o algoritmo criado por Ana Helena e Henrique nasceu espontaneamente ao redor da mesa dos almoços de domingo. Em 2018, a IA dos irmãos gaúchos mereceu artigo na revista Journal of Biomedical and Health Informatics. A dupla poderia se dar por satisfeita de ter sua tecnologia reconhecida em uma publicação do prestigioso IEEE — a maior organização profissional técnica do mundo, sem fins lucrativos, dedicada ao avanço da engenharia, da computação e áreas afins.

Mas, como lembra Ana Helena, era preciso levar a inovação para os hospitais. E eles conseguiram (muito) mais do que isso: integraram a NoHarm ao SUS gratuitamente.

Os irmãos vêm de uma família humilde, contam. Durante toda a vida, os pais foram servidores estaduais e os quatro filhos sempre estudaram em colégios e universidades públicas. “É uma forma de retornar à sociedade tudo aquilo que recebemos”, diz Henrique.

Para o futuro, ele e Ana Helena têm um desejo “muito sutil” de internacionalizar a IA porque, como lembra o cientista da computação, a demanda é global. “Mas é difícil, teríamos de encontrar um parceiro muito específico”, explica ele. “O nosso foco hoje é 100% o Brasil.”

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